Sou o José-Manuel e nasci em Paris há 49 anos atrás. O meu pai é galego – jornalista e escritor reconhecido na região – e a minha mãe Basca. Porém, graças ao Franco e ao Franquismo, regime de ferro que assassinou milhares de espanhóis em geral, e o meu avô paterno em particular, eu sou francês.
Pouco tempo depois de eu nascer os meus pais voltaram a mudar-se, agora de Paris para Boulogne-Billancourt, onde passei a minha infância a jogar à bola com os filhos dos operários da fábrica da Renault, que era bem perto da nossa casa. Para além do futebol, que sempre me encantou, desde pequeno que sou apaixonado pela música. Não espanta por isso que, em moleque, quando não estava a correr atrás da bola, os meus serões caseiros se passassem em frente ao rádio e ao gira-discos, muitas vezes com o meu pai e os seus amigos artistas e intelectuais, ouvindo desde Chuck Berry a músicas revolucionárias espanholas. De resto, o meu gosto musical sempre foi muito ecléctico, e assim se manteve até os dias de hoje.
Na adolescência fui apanhado pelo panorama crescente do Rock Britânico, e logo me amarrei nos The Clash, banda que muito influenciou o meu primeiro projecto musical: uma banda rockabilly formada por volta de 1984 chamada les Hot Pants, na qual tocavam entre outros o meu primo Santi, o baterista.
Com os les Hot Pants toquei numa série de bares e armazéns abandonados para multidões de jovens franceses sedentos de algo diferente, de uma alternativa à cultura musical massificada.
Na mesma onda de indie rock francês dos anos 80 iniciei uns anos mais tarde, em 1986, um novo projecto: os Los Carayos, banda na qual toquei também com o meu irmão Tonio, o trompetista.
Este segundo projecto, contudo, não durou muito, pois em 1987 foi dado o pontapé de saída do meu primeiro grande amor: la Mano Negra.
La Mano Negra é (terá sido?), antes de mais, uma lendária organização anarquista, alegadamente fundada na Andaluzia, que terá operado em Espanha na segunda metade do Século XIX. Paralelamente, e naquilo que directamente me diz respeito, la Mano Negra foi (e esta foi mesmo) uma banda, composta por dez membros, que formei com o meu primo Santi e o meu irmão Tonio, na qual misturámos ritmos e sons como o punk rock, o ska, o reggae, a salsa e o flamenco, e na qual pude tocar e cantar músicas que compus e que, por vários motivos, não tinha conseguido encaixar nos meus anteriores projectos musicais. Desde cedo que cantei em várias línguas: francês, inglês, castelhano, galego, basco, português e até, nalguns casos, árabe. Acima de tudo, la Mano Negra foi o nosso primeiro veículo para o reconhecimento internacional. Em 1987 lançamos o nosso primeiro álbum, chamado Patchanka, no qual se destacou o tema Mala Vida.
A música bombou e em breve estávamos a assinar contrato com a Virgin! Ao Patchanka seguiram-se os álbuns Puta’s Fever (talvez o mais conhecido), King of Bongo e, já depois da separação da banda (aliás, grande parte do sucesso que alcançámos chegou depois da separação), Casa Babylon.
Muita gente ligada à cena alternativa francesa achou que o facto de termos fechado com a Virgin nos tinha transformado nuns vendidos. Da minha parte, não concordo. Pagaram-nos as viagens e permitiram-nos aprofundar e expandir as nossas raízes musicais. Aliás, se dúvidas restassem, basta pôr os olhos nas tournées que fizemos para perceber que não passámos a ser uns comercialóides: em inícios da década de 90 saímos de Nantes a bordo de um cargueiro chamado Melquiades, juntamente com uma companhia de teatro e de artes circenses, rumo à América Latina. Nessa (adequadamente) chamada Cargo Tour fizemos todo o continente de barco, e tocámos de graça em anfiteatros e praças públicas das cidades portuárias por onde passámos, perante multidões de pessoas, em muitos casos totalmente desacostumadas a receber bandas estrangeiras. Tudo isto em países como o Peru, o Equador, República Dominicana, Cuba, Venezuela, México, Brasil, Uruguai, Argentina e Colômbia. Mais tarde tentámos uma tournée nos EUA, onde chegámos a fazer a primeira parte de um concerto de Iggy Pop, mas dada a fraca aceitação do público logo percebemos que não estávamos propriamente talhados para o mercado anglo-saxónico (muito embora até cantássemos algumas músicas exclusivamente em inglês). Finalmente, em 1993 percorremos toda a Colômbia a bordo de um comboio, tocando também de graça nas mais remotas populações, numa viagem que deu origem a um livro escrito pelo meu pai sob o título Mano Negra na Colômbia: um comboio de gelo e fogo.
No final da viagem pela Colômbia, e talvez como reflexo de tantos meses juntos vivendo em condições económicas deploráveis, todos os membros da banda excepto eu e o teclista decidiram voltar para Paris. Foi uma grande desilusão. Fiquei mais uns tempos na Colômbia até que também eu decidi voltar para a Europa, onde me instalei em Madrid e, com alguns ex-Mano Negra, comecei o projecto Rádio Bemba (nome do sistema de comunicações utilizado por Castro e Guevara na Sierra Maestra, aquando da revolução cubana). Contudo, a coisa foi efémera. Entrei em depressão e mandei-me de volta para a América Latina.
De volta ao lugar onde criei raízes, iniciei uma viagem de sete ou oito anos seguindo o rumo das vacas (sim, das vacas! De loucos, não?). Onde havia vacas eu ia. Onde não as havia eu não entrava. Bastava um triângulo de queijo da vaca que ri para que eu me sentisse no lugar certo. Foi uma travessia no deserto durante a qual fui guardando uma espécie de diário musical das minhas viagens. Pensava que a minha carreira artística estava acabada. Tinha-me despedido da ideia de ser músico para a vida, no entanto, não queria acabar sem tirar de dentro de mim os sons que vinha acumulando e que me zumbiam nos ouvidos. Passei uma temporada no Rio de Janeiro,
outra no México (chiapas, Oaxaca, etc...),
outra na Colômbia...
Foi uma fase na qual busquei inspiração, sobretudo, na cultura de rua e dos bares manhosos da América Central e do Sul... sempre com a minha inseparável maleta de gravação portátil, sempre viajando clandestino.
Clandestino viajei e, em 1998, com recurso apenas à minha maleta de gravação portátil, Clandestino gravei os registos das minhas viagens. Essencialmente cantado em castelhano, acabei por fazer um álbum marcadamente latino, mas distante dos ritmos tipicamente orientados para a dança, tão próprios da música latina.
Muito embora tenha demorado uns meses a descolar, e para minha grande surpresa, Clandestino, lançado em Abril de 98, era já pelo fim desse mesmo ano um dos álbuns mais vendidos em França e um dos álbuns franceses mais vendidos no estrangeiro. Com esse disco me dei a conhecer ao mundo e me reconciliei com a música.
Em 2001 lancei o meu segundo álbum a solo: Próxima Estación: Esperanza.
Foi igualmente um sucesso, tendo trepado ao topo de várias publicações musicais europeias num período de semanas. De um momento para o outro vi-me na capa do Wall Street Journal e, em Dezembro, vi-me até entalado entre o Bob Dylan e a Bjork na lista dos 10 melhores álbuns do ano para a Rolling Stone!
Porém, o sucesso não me mudou os hábitos nem os ideais, e após a tournée Rádio Bemba Sound System continuei a tocar de graça em prisões, em centros e fóruns culturais e em manifestações anti-globalização.
Desde então, e até 2005, rescindi com a Virgin, colaborei com o duo de artistas malianos Amadou & Mariam
com a Jane Birkin
com os jamaicanos Toots & The Maytals
Radiquei-me em Paris e lancei o álbum Sibérie m'était contée, distante dos humores sudakas, escrito essencialmente em francês e inspirado pelo frio siberiano do Inverno europeu (isto para quem, como eu, está habituado a temperaturas próprias de outras latitudes).
Mudei-me para Barcelona e cheguei a abrir um bar na Calle Escudellers,
Em 2005, porém, pus-me novamente a andar rumo ao Brasil para tocar no Fórum Social Mundial, que se realizou em Porto Alegre. Daí segui viagem para São Paulo e depois para o Recife, tocando pelo meio uma série de concertos com o grupo francês La Phaze. Entre 2005 e 2006 fiz ainda uma tournée com os Rádio Bemba enquanto viajámos novamente por Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Venezuela, Chile, Cuba e México. No total, tocámos para cerca de 700.000 pessoas. Mas o mais impressionante foi no México, onde no dia 26 de Março de 2006 pude reafirmar o meu apoio ao Sub-Comandante Marcos, Chefe do EZLN, perante as 150.000 pessoas que nos vieram assistir na praça Zocalo, na Cidade do México.
À digressão sul-americana seguiu-se uma nova tournée pela Europa, e uma participação musical no filme Princesas, do realizador espanhol Fernando Leon de Aranoa. A música em questão foi me llaman calle, sobre as nobres princesas de rua que desde tempos imemoriais trabalham para satisfazer os apetites de homens famintos, e rendeu-me um prémio Goya.
Também no cinema participei ainda no filme do Kusturica sobre o Maradona, com o tema La Vida Tombola – musica dedicada a um dos meus ídolos de todos os tempos.
De um momento para o outro parece que o mundo pop me descobriu, ao ponto do Robbie Williams ter incluído no seu álbum Rudebox, de 2006, uma versão do meu Je ne t’aime plus...
Em 2007, finalmente, lancei o meu último álbum, La Radiolina, no qual tentei regressar às raízes de La Mano Negra, cantando novamente em inglês, castelhano, francês, português, e agora também em italiano.
Trotamundos nómada, alma rebelde, amante da liberdade e da natureza, observo e escuto e assim aprendo. Eterno músico de bairro, fiel às minhas raízes rockeiras, em dívida com o reggae, pendente dos tambores africanos, conto contos agarrado à rumba com misturas electrónicas; canto a história e ponho-a a dançar.
Chao
Manu Chao foi e será sempre uma inspiração para mim.Obrigado por esta sintese belíssima da vida desse grande musico,cidadão do mundo e defensor incondicional da cultura local !
ResponderEliminarAproveito para dar os parabens a todos os meus amigos que escrevem neste blog , têm aqui um fiel leitor.
granda bastinhas, vou ter de tirar uma tarde para ler isto com calma!
ResponderEliminarcontinuação..
vito
Tiro o chapéu a este gajo. Aos 49 anos viveu uma vida de viajens, apenas por querer ser fiel à sua alma. Essas viajens deram-lhe as emoções suficientes para se poder expressar através da música e criar uma quantidade suficiente de obras imortais. Muito obrigado por este artigo. Está excelente e deu-me uma visão divina de Manu Chao.
ResponderEliminarps - o Bar na Escudellers chama-se Bar Mariachi