A Auto-Estrada estava a abarrotar de emigrantes e de camiões, mas o Rui estava decidido a chegar a horas dos concertos da noite. Não os perderia nem por nada. Meteu por isso prego a fundo, todo afiadinho no daewoo que a mãe lhe emprestou, e abriu caminho gritando insultos aos demais condutores.
Enquanto via passar a contagem decrescente das placas de sinalização ia ouvindo no ipod as músicas por que esperava, e ia reflectindo sobre miudezas como o papel do violino, do saxofone e do trompete na música dos dias que correm. Pensou que, salvo raras excepções – como os Beirut –, o acordeão é o primo do campo dos instrumentos musicais... onde toca dá merda (como as rádios locais vieram a demonstrar à exaustão, quando a bateria do ipod acabou).
Quase 400 kms e muitos veículos longos depois, lá chegou ao destino. À medida que entrou na vila foi passando por minimercados, cafés, igrejas (muitas igrejas) e lojas de fotografias de cujas montras acenavam famílias cheias de uma felicidade tipicamente campestre. Na sua cabeça ficou gravado um quadro com fundo cor-de-rosa no qual, enfiada num vestido de fada branco, se destacava uma criança três vezes repetida: duas de corpo inteiro em poses de pequena princesa da província, e a terceira, maior, esfumada entre o primeiro plano e o fundo, com a cara da menina a fazer lembrar em demasia a cabeçorra de estivador que lhe terá deixado de herança o pai.
Porém, esta e outras divagações cessaram assim que chegou ao recinto. No fundo de um amplo vale, rodeado por densos bosques de um verde gritante, coberto por um céu cor-de-laranja-rosa-roxo-azul, assentava o palco principal. O cenário era incrível, como ele nunca tinha visto igual. E de todo o lado a visão para o palco era perfeita. A beleza natural do lugar era espectacular. As condições para assistir aos concertos não podiam ser melhores. Tudo a postos, tudo na boa!.. vamos a isto granda Ruizão – pensou enquanto esfregava as mãos, caminhando para a primeira cerveja da noite.
O primeiro a entrar em palco (ou pelo menos no palco idílico da cabeça do Rui, que não apanhou o festival desde o início) foi Peter Hook, ex-baixista dos Joy Division e dos New Order, para tocar o álbum Uknown Pleasures, da primeira daquelas bandas. Rui viveu minutos de antologia quando o homem fechou o concerto com she’s lost control, transmission e (como um brinde divino) Love will tear us apart. Sem contar com a improvável hipótese de vir a assistir a festivais de música no Além, nunca Rui virá a estar tão próximo de ouvir os Joy Division. Muita bom!
Ora bem, já lá vão umas quantas cervejolas... e agora vem White Lies. Vamos lá atestar o balde e siga a marinha!
O primeiro acorde não desilude: abrem com Place to hide! De loucos. De imediato a multidão vai aos arames! Cantando a plenos pulmões, Rui só parava para beber mais uns golos da sua jola e aceitar uns bafos dos charutos que outros saltantes lhe iam rodando. E os momentos de euforia iam-se sucedendo, e ele cada vez mais bêbado, e as frases ecoando na cabeça mais e mais turva e extasiada do Rui: if you tell me to jump then I’ll die, I love the feeling when we lift off, but if judgement day started tonight at least I’d know I was right and I’d be laughing at the end of the world, just give me a second darling to clear my head, so is this the price of loooooooove???
No fim do concerto acendeu um cigarro. Deu o primeiro bafo e logo experimentou um prazer cansado e familiar, semelhante ao do cigarro que mais lhe agrada. Ca granda concerto. Foda-se, se valeu bem a pena a viagem! Obrigado. Muito obrigado! Já bebi mas é de mais. Bom... vou mas é até à barraca dos comes e bebes que isto ainda tem muito para dar.
Foi uma bifana, foi um pão com chouriço e mais uns baldes de jola para matar o tempo que sobra. Seguiu-se um café a escaldar e o Rui queimou-se na língua, que ficou a saber a metal ou a sangue e a doer para cacete. Agora recebe um SMS que o informa de que já saiu a chave do Eurobilhões e não, não ficou multimilionário. Foda-se, umas ganham-se outras perdem-se... Até lá venham mas é mais umas jecas.
Vamos lá agora encarar esses Klaxons. Rui conhecia apenas três músicas, nada mais. A primeira impressão (já meio desfocada pelo excesso de alcool e fumo): três putos imberbes, um órgão, duas guitarras e uma bateria. Começa o concerto. Rasgadinho. Ponto por ponto, música após música, Rui vai sendo agradavelmente surpreendido: epá, grandes guitarradas! E bons desempenhos vocais, meu (repara que três deles cantam)! O concerto vai a meio e está tudo aos saltos. Men, esta merda é muita boa: os gajos têm um ritmo do cacete! Enfeitiçado pelas guitarradas e pelos falsetes do trio cantante, Rui perde a noção do tempo e do espaço e já está mais para lá do que para cá. Ao seu lado um bacano de chapéu à Al Capone e gravata preta estreitinha vai bebendo um balde de jola. Olha... um balde! Deixa lá ver ao que sabe faxavor... E vai mais um trago. E outro. E mais uma jola. E mais um bafo. E o Rui debate-se agora com a mãe natureza: a Gravidade chama-o com toda a força para baixo, mas ele quer e vai manter-se em pé. Nisto, os Klaxons avisam em voz alta: It’s not over yet...
E se é verdade que os Klaxons tocaram essa e logo acabaram o concerto, não é menos certo que, de facto, a coisa não estava acabada. É que houve ainda a tenda electrónica, onde um cabrão armado em Limp Bizkit de Alijó trepou pelas armações até ao telhado e se pôs a cantar alternadamente, aos gritos e em inglês, musicas com títulos como Fuck Lisbon e I am Gay. O Rui, que não é homofóbico, mas que é amante da língua portuguesa e, como qualquer alfacinha da gema, acérrimo defensor da sua Cidade, olhou-o com uma mirada vazia de olhos de peixe morto, mexendo-se na cadência e ao sabor das marés da multidão, fazendo toda a força que a sua debilitada mente lhe permitia para que o outro cabrão caísse dali abaixo. Infelizmente não deu resultado. O gajo desceu pelo próprio pé. Mas nem tudo foi mau. Depois da sova que Rui pregou, em partes mais ou menos iguais, ao fígado e ao cerebelo, também ele conseguiu sair dali pelo seu próprio pé, comer um folhado comprado a uma gorda que parecia peruana mas que provavelmente seria de Vila Praia d’Âncora ou arredores, e foi dormir de barriga cheia.
O segundo dia começou com a sugestiva imagem de um galifão de cabelo comprido e barbicha à futebolista, com uma ponta de charuto aceso, a rebentar os preservativos cheios de ar que revoavam por cima das cabeças da multidão à laia de zepelins escorregadios. Rui olhou para o gajo e achou que ainda devia ser dos poucos com quem se poderia enturmar, já que o sítio estava cheio, a abarrotar, de crianças. Eram hordas de adolescentes púberes em tronco nu tirando fotos de grupo.
O primeiro concerto, ainda o sol não se tinha posto, foi Dandy Warhols. Motins de miúdos passavam correndo rumo ao centro do agito, talvez na esperança de sacar um arranhão ou uma mazela pouco dolorosa que, aos olhos das miúdas da idade deles, atestasse a respectiva maluquice. Casais de rabo-de-cavalo dançavam abraçados enquanto tiravam fotos com os telemóveis ao som de música de anúncio de... telemóveis. Para todos eles, ao que parece, o concerto foi a puta da loucura. Porém, o Rui achou aquilo tão emocionante como uma ultrapassagem entre veículos longos nas lentas faixas da A1.
Mas calma. Nem tudo haveria de ser sensaborão. A noite avançou e chegou Adolfo Luxúria Canibal, escuro como a morte que diz ter vivido, a abrir com Tiago o Capitão e a sua Lei de Talião. Mão Morta em grande forma! Cinco grandes músicos e um cozido do bróculo a pôr a cereja do carisma no topo de um bolo feito de guitarradas à Iron Maiden a cintilarem por entre sons profundos e sombrios. A multidão (agora composta por um público já um pouco mais velho), e o Rui em particular, vibraram com Novelos de Paixão e as Noites de Budapeste, charro aqui charro ali e mais um vodka para atestar, sempre a abrir a noite toda, sempre a ronquenrolar! E o Rui em Paredes imaginando-se na Gare Marítima de Alcântara a ver o sol nascer no mediterrâneo. Granda concerto! Boa música portuguesa, à qual muitas vezes não damos o devido valor. E no entanto cá está ela, há quase tantos anos como eu! – pensou.
Seguiram-se os The Specials. Num ambiente muito This is England (no palco apenas, pois na plateia não havia rasto de suspensórios ou pólos fred perry), os velhotes começaram por pedir desculpa por nunca terem vindo a Portugal tocar para os nossos pais, agradecendo assim a presença de tanta gente, mesmo sabendo que, provavelmente, a turba não tinha ido lá para os ver, nem sequer saberia o que é o Ska. Rui olhou à volta e só vislumbrou um tipo que, nitidamente, tinha saído de casa no intuito de ouvir The Specials. E no fim do concerto pensou: aquele cabrão alto e loiro de bigodes que aí andava todo irado com os velhos é que tinha razão. Os anos passam e as músicas ficam, intemporais, desbravando caminhos e abrindo novas oportunidades aos malucos que se seguem. É que foi um granda concerto, bem sintetizado pela frase que o encerrou: you're wondering now what to do, now you know this is the end!
Mas não, não foi o fim.
Diz o Rui: o fim, mas mesmo o fim, o fim da picada, o fim do mundo em cuecas, foi trazido pelos Prodigy. Foi todo o concerto sem um milésimo de segundo de pausa, a guitarra sempre ligada, sempre afiada, a multidão sempre aos saltos, aos empurrões, sempre a fumar dos seus, dos outros, e do pó levantado pelos saltos de dezenas de milhar de pés, mais o Firestarter e o Smack my Bitch Up, mais uma série de êxitos posteriores a que perdi o rasto...
E no final perguntou-lhe o galifão de cabelo comprido e barbicha à futebolista: então Rui, curtiste?
Peter Hook (Joy Division)
White Lies
Klaxons
http://www.youtube.com/watch?v=cDqNcCuFIzE&feature=related
(Magick)
Mão Morta
The Specials
Cabrão do Rui! Ouvir Love Will Tear us Apart ao vivo é algo que me provoca um sentimento apenas: inveja. Inveja pura e dura que se reflecte num leve ódio à pessoa do Rui mas passageiro. lol
ResponderEliminarA bezana da primeira noite parece ter sido daquelas que valem a pena.lol
abco
Pintão
Grandissimo artigo, muito obrigado pela excelente descrição de Paredes de Coura.
ResponderEliminarAbraço!
Fds muito bem passado e em boa companhia.
ResponderEliminarDa próxima tens de nos convencer a ir contigo fazer essas maratona pelas autopistas portuguesas.
Abraço